Melhor com som:
“Fulano de tal é tão carrancudo…”
Eu tenho pensado muito sobre isso ultimamente, sobre o que é ser uma pessoa carrancuda, e sinceramente, não entendo porque essa palavra tem um sentido tão negativo. Quer dizer, até entendo um pouco, mas gostaria de mostrar um novo ponto de vista. Veja bem, a carranca é um tipo de máscara, tem a aparência antropomórfica, ou seja, lembra as feições de um ser humano, porém são feições distorcidas, ferais e amedrontadoras. Essas máscaras mau humoradas, com caretas e dentes arregalados tem origem em culturas indígenas da África e também das Américas. Seu principal objetivo é espantar maus espíritos, assustar as coisas ruins e trazer proteção. As facetas distorcidas e exageradas tem como propósito assustar de volta e colocar medo em tudo de negativo que tentar cruzar aquele caminho, como um pequeno guardião.
Aqui no Brasil, ganhou sua versão nas cabeças de proa, adornos que eram colocadas nas proas das embarcações, principalmente as que navegavam no rio São Francisco para espantar os maus espíritos.
Então ser carrancudo é, essencialmente, rosnar para os seus problemas até que eles fiquem assustados demais e desistam de te atormentar. É a definição em imagem daquela frase “remédio pra doido é doido e meio”. É se vestir com a sua própria loucura e a usar como escudo. Quanto mais o tempo passa, mais certeza eu tenho que esse é o único jeito de atravessar os dias difíceis, aqueles que a gente sente vontade de começar a latir pros outros na rua. A solução é latir mesmo.
Quando a gente deixa as coisas ruins que florescem dentro de nós cumprir esse papel de nos blindar, proteger e alertar, nós entendemos que nada de ruim que a gente passa é 100% em vão, em uma analogia boba é como o músculo hipertrofiando: as fibras se quebram com o esforço, o que causa a dor e incômodo quando fazemos o exercício, mas isso permite que elas se reconstruam mais fortes e resistentes, que é quando o músculo começa se definir e destacar sob a pele, quando ganhamos força muscular. Não é necessariamente um processo agradável, mas faz bem. E mais pra frente a gente se agradece. E também aumenta a carga.
Tem uma música chamada Carranca, da banda Vespas Mandarinas que fala assim:
Meu barquinho vai
subir o são Francisco
como quem sobe
os degraus de uma igreja
não vou entregar
minha cabeça em uma bandeja
quero morrer na peleja
[…]
a gente tem que viver
sorrindo quando é pra chorar |
e fazer a morte tremer
de medo de vir nos buscar
Certo, nós não precisamos morrer na peleja, inclusive a preferência é pelo oposto disso, mas a conclusão que eu tiro é que é preciso viver a vida de maneira que a morte não tenha tanto poder sobre a gente. A morte, nesse caso, representa todos as desgraças que passamos e nos fazem querer jogar tudo pro alto e sumir por um mês inteiro. Elas vão acontecer, querendo ou não, o que vai mudar tudo é a forma como encaramos isso, o quanto de poder damos à essas coisas para nos afetar. É incrível como cinco minutos ruins conseguem azedar um dia inteirinho e é impossível não sentir, só não podemos nos deixar paralisar.
Em partes, acredito que o incômodo maior vem da culpa que sentimos por reagir mal às coisas, até mesmo quando são coisas negativas. A carranca representa a liberação desses sentimentos viscerais, de ódio, raiva, frustração. Ao permitir que essas emoções fluam através de nós, automaticamente nos libertamos do peso de carregá-las, de oprimi-las e de escondê-las nos confins do nosso ser. Acho que ninguém tem tanto espaço interno assim pra suportar tantas emoções reprimidas, é preciso sentir e deixar ir. Já falei um pouco mais sobre esse pensamento em outro texto (recomendo a leitura!).
No fim, isso tudo tem um pouco daquele clichê: o que não te mata te fortalece. O que não mata, deixa carrancudo.
⚠️ Informes informais:
📖 O financiamento coletivo do meu livro O Mundo Por Trás dos Vulcões está programado para se iniciar no dia 18 e eu não poderia estar mais empolgada <3 espero poder contar com o apoio de todos vocês!
🫂 Aliás, gostaria de agradecer a todos os subscritos. Recentemente, atingimos a marca de 45 pessoas recebendo essa newsletter e isso me deixou imensamente feliz! Abraço forte em cada um de vocês, isso tem me dado um gás que vocês nem imaginam
💭 Nos vemos na próxima quarta feira! Até lá, me conte tudo que você pensa:
Curti muito essa edição!! Não fazia ideia da relação das carrancas com as embarcações do Rio São Francisco. Amei saber, valeu🫶
Carol excelente texto, vou colocar uma carranca aqui em casa, moro numa casa de madeira e vidros, rodeada pela Mata Atlântica, tenho móveis e imagens antigos desde os hinduistas, passando pelos orientais , chegando aos cristão e umbandistas
Mas não tenho uma carranca.
Agora que aprendi com você o que é uma carranga, na próxima vez que for na feira de Embu das Artes (onde moro) pedir a um escultor, esculpir para nós!
Grata pelo texto
Compartilho com amor!