Condenação
"Aquele era meu maior inimigo, um criminoso sujo e desprezível. Mas como condená-lo?"
Procurei esse sujeito por muito tempo, foram anos de investigação, olhares vigilantes, atenção aos detalhes, estudo da rotina, uma tentativa incansável de desvendar seus pensamentos e, como não poderia faltar, doses generosas de perseguição e paranoia.
Ele era o meu nêmesis, minha antítese, meu pior inimigo desde que eu me lembrava, sua alegria era me ver infeliz. Ao longo da minha vida toda esse elemento foi o responsável pelas maiores desgraças, fracassos e decepções que haviam acontecido. Ele sempre estava lá de alguma forma, sob os holofotes principais ou nos bastidores, até mesmo quando eu achava que não, ele estava lá, ou tinha dedo no meio. Logo que percebi isso, eu me comprometi de corpo e alma a encontrar esse desgraçado, prender ele e colocar atrás das grades ou o que quer que eu pudesse causar de dano à esse sujeito. Claro que, num primeiro momento, não passava de uma promessa vazia de criança, como quem jura se vingar dos pais por terem escondido cenouras no meio da carne, mas esse sentimento de impotência perante alguém tão determinado a me tornar a pessoa mais miserável do mundo foi crescendo, se transformando em raiva, posteriormente em ódio e por fim nessa sensação amarga que eu sempre tinha no fundo da boca desde que havia começado essa caçada, como quem ficou muito tempo em silêncio.
Passados mais de trinta anos de busca, eu finalmente havia conseguido. O tinha em minhas mãos, ou melhor, me esperando. Fui alertado de que poderia ser um pouco chocante pra mim ficar frente à frente com ele, que deveria ser cauteloso e acalmar os meus nervos para não perder o controle. Sinceramente, manter o controle era a última das minhas preocupações, pensar nisso até me excitava um pouco.
Naquela noite, eu entrei no prédiozinho abandonado e escuro pela porta dos fundos, com o coração batendo na garganta, a sensação estranha que em partes me deixava alerta e em partes me dava vontade de chorar, as batidas aceleradas do meu coração se confundindo com os nós de tristeza e amargura. Não era bem como eu esperava estar me sentindo, mas eu me servia de ódio suficiente para seguir em frente. A maior parte das luzes do corredor estava quebrada, tornando difícil o caminhar entre pedaços de concreto, pedras e lixo do edifício parcialmente depredado. O ar era denso em minhas narinas e tinha cheiro de canteiro de obras, o que não tornava mais fácil de respirar. A única luz firme ali escapava das frestas de uma porta improvisada com um lençol velho e esburacado, pendurado diante de um portal que dava para uma sala quase vazia. Parei na frente do pano por alguns segundos.
Não sabia o que me esperava do outro lado. Estaria ele amarrado? Amordaçado? Nú? De algemas? Apenas sentado, voluntariamente me esperando? Traguei o ar algumas vezes como se estivesse puxando coragem pra dentro de mim, ela ligada às moléculas de oxigênio que tão sofridamente conseguia colocar pra dentro dos meus pulmões. O coração palpitando e a boca seca me empurraram dois passos para frente, minha mente estava ansiosa e com medo, mas meu corpo queria terminar logo com aquilo.
Cruzei a soleira. Era ele ali, tão de pé quanto eu. Meu coração batia forte. O vi de relance apenas, não consegui olhar nos seus olhos. Pela visão periférica, o vi desviar o olhar quase tão rapidamente quanto eu, talvez por medo ou por vergonha. Bobagem. Gente como ele não tem vergonha alguma. De costas para o criminoso vil, cuspi no chão e tentei focar meus olhos em qualquer coisa menos nele pois eu temia não conseguir proferir palavra se o fizesse. Olhei todas as rachaduras, manchas e infiltrações nas paredes descascadas, respirei fundo mais algumas vezes antes de conseguir abrir a boca para formular palavras.
— Você é um rato imundo — num primeiro momento a voz saiu baixa e falhada e eu me amaldiçoei. Limpei a garganta e cuspi no chão mais uma vez antes de prosseguiu: — Seu filho da puta, você é um ser humano desprezível e mau caráter… sabia disso? Ein? Que você fez da minha vida um inferno?
Eu arfava entre as palavras como se fosse difícil respirar, porque o era. Me perdi em pensamentos, lembrando de todas as vezes que algo terrível tinha acontecido na minha vida, ou na da minha família, ou na dos meus amigos por conta daquele sujeito. Flashbacks dele se rindo pelos cantos em velórios, em hospitais e na sala da diretora do colégio, sempre em segundo plano, mas sempre presente.
— Eu te odeio. Você nunca tentou fazer nada que prestasse, só destruiu tudo o que você tocou, estragou muita coisa pra mim… — eu falava em um tom baixo e comedido, porém firme. Ele não respondia e eu não sabia se me olhava, mal escutava sua respiração, tão alta que estava a minha própria. Me orgulhei da voz mais firme dessa vez, porém por dentro eu sentia um frio na barriga, nos ombros, até nos ossos. Nervosismo de estar ali, frente ao meu maior rival. — Maldito… — quase rosnei, cerrando os dentes virei a cabeça em sua direção, mas vi que ele imitava meu movimento, tentando me olhar nos olhos e eu recuei. Dei as costas novamente e andei alguns passos dentro da sala para dissipar um pouco da minha tensão. Havia um cheiro úmido e levemente podre no ar, proveniente da sujeira e das infiltrações que eu encarava sem piscar.
Agora eu sentia meu corpo todo tremer e eu lutava contra uma incontrolável vontade de chorar, sentia minha garganta apertada e meus olhos ardiam, meu maxilar travado criava uma pressão absurda na minha cabeça e me doíam os dentes. Cerrei os punhos e pisquei algumas vezes, atordoado. Parte de mim fervia de raiva e a outra parte estava prestes a desabar. Naquele momento, eu era como um castelo de cartas, frágil, com potencial destrutivo e uma parte contendo a outra. Eu não devia me sentir assim, estava perante um animal, uma aberração, com toda certeza era menos que humano… a fúria me queimava a garganta, mas eu não conseguia cuspir mais. Não queria de forma alguma humanizar aquele porco imundo, então ainda tentava não o olhar nos olhos, evitava até de olhar naquela direção, não queria ver suas mãos, seus ombros, joelhos, o formato do seu corpo, ou a cor dos seus cabelos… parte de mim tinha medo de olhá-lo, na verdade. A outra parte queria fazê-lo mais que tudo.
— Eu queria que você… nunca tivesse nascido. — Falei como quem desabafa, em voz quase sussurrada. Já não sabia mais se estava com raiva ou se estava chateado.
As rachaduras nas paredes se tornavam cada vez menos atraentes e as sombras da luz tremulante pendurada na parede com dois pregos começava a me dar calafrios. A sala já estava fria assim quando eu entrei? Não sei mais. Resolvi acabar logo com isso e, puxando uma grande golfada de ar, eu estava pronto pra desfiar o rosário de seus crimes ali mesmo.
— Você é um ser humano vil, asqueroso, perverso, preguiçoso, sanguessuga, só faz o mal, só vive o mal… você não tem salvação. — Eu cuspia em uma cadência confusa e frágil, mas pelo menos não gaguejei ou hesitei, mas também não o olhei nos olhos. — Você é odioso, cara. Você não merece estar vivo. — Não importava quanta cólera eu tentava colocar nas minhas palavras, tudo saía em tom de confissão, não de acusação.
Quanto mais eu falava, mais trêmulo e fraco me sentia… parecia que todo o ódio que eu acumulei por tantos anos estava aos poucos se esvaindo de mim, mas não da forma que eu queria, estava apenas escorrendo lentamente como mel ao invés de inundar tudo como uma tempestade. Eu queria machucá-lo, fazê-lo se sentir mal, eu queria gritar bem alto, pra encerrar,
“EI SEU FILHO DA PUTA TUDO QUE VOCÊ TOCA VIRA MERDA”, mas eu não conseguia. Voltei a gaguejar, me faltava o ar, me faltavam as palavras, me faltava a coragem e todo o ódio que fez morada dentro de mim por tanto tempo era como veneno agora e me causava mal estar. Tudo de horrível que ele havia feito parecia fumaça dentro da minha memória, era muito enevoado e confuso, eu não conseguia me agarrar à uma unidade de pensamento coerente. Estava arfando quando resolvi que precisava sentar. A única cadeira estava bem de frente para onde o condenado estaria de pé. Criei toda a coragem do mundo e me virei.
Olhei nos olhos da criatura, finalmente.
Nem sei dizer quanto tempo fiquei em silêncio olhando para frente. Havia acontecido tudo que eu não queria: humanizei o sujeito. Nos olhávamos com pena mútua, dois coitados frente à frente. Fiz menção de me sentar e ele me acompanhou, ainda solícito. Não havia um traço de vergonha ou arrependimento em seus olhos, talvez estivesse intrigado. Talvez tivesse perguntas para mim, como o porquê de eu ter perdido tanto tempo da minha vida o perseguindo, ou por que o odiava tanto. Seria eu um enigma tão grande para ele quanto ele o era para mim? Era a primeira vez que eu pensava dessa maneira.
De repente, houve uma mudança em suas feições. O olhar impassível era agora também curioso. Então, ele sorria triunfante, como se eu houvesse deixado passar algum detalhe crucial que só ele percebeu. Seus traços pareciam mudar ao redor dos seus olhos. Notei então que na verdade ele espelhava as minhas feições e eu me encontrava de frente para um espelho. A verdade me atingiu como um soco no peito, até perdi o ar.
Aquele era meu maior inimigo, um criminoso sujo e perigoso, sujeito mau caráter, vil e desprezível.
Mas como condená-lo?