“Dentro de nós há uma coisa que não tem nome. Essa coisa é o que somos”
(José Saramago)
O tema da nossa edição hoje é uma brisa doida que eu cultivo na minha cabeça há bastante tempo: o denominador comum. Pense no seguinte: o que te torna você? Mesmo mudando de aparência, gostos, opiniões, existe algo aí dentro que te faz saber que você é você?
Antes de tudo, vamos concordar com duas grandes verdades:
Vivemos várias vidas dentro de uma única vida.
Hoje somos radicalmente diferentes do que éramos há cinco, dez ou doze anos.
Até aqui, estamos no campo do conhecimento comum.
Agora a coisa vai começar a divagar nas ideias, porque eu vou falar de tarot. O arcano 13, A Morte, fala, entre outras coisas, sobre grandes mudanças, troca de ciclos, renovações e novos começos. Esse não é exatamente um conhecimento universal, mas muitas pessoas estão familiarizadas, ao menos superficialmente, com o significado dessa carta. A morte, no sentido simbólico, representa o desprendimento de algo conhecido rumo a uma nova jornada, da qual não temos a mínima ideia do que esperar.
Em muitas culturas, o número 13 é considerado de azar, mas também é cercado de simbologia e misticismo. Uma das muitas teorias do porquê esse número representa a carta da Morte no tarot clássico é a seguinte:
Os egípcios acreditavam que a alma humana, em vida, passava por 12 estágios de evolução. Quando essas fases eram concluídas, o iniciado nos mistérios estaria pronto para o décimo terceiro estágio: A Morte, o primeiro estágio da pós-vida, da nova vida, da vida eterna que seus deuses prometiam, desde que a alma fosse capaz de passar pelas provações necessárias e estivesse apta para essa nova fase (não vou detalhar toda a simbologia desse ritual, pois isso pode ser assunto para outra ocasião). Registros apontam o Egito Antigo como uma das nações que contribuiu para formular o baralho de tarot como o conhecemos.
Na prática, isso significa que morremos muitas vezes em vida e renascemos de maneiras diferentes. Temos várias versões de nós mesmos enquanto vivemos uma única vida neste corpo, nesta era, nesta experiência humana. Mudamos nossos gostos, aparência, estilo, hobbies, ciclos de amizade e ainda somos nós. Mas, como garantimos que não estamos nos perdendo nesse processo, em vez de nos descobrindo?
Aí que entra o denominador comum. Para quem não se lembra das aulas de matemática, o denominador comum é um número pelo qual um grupo de números pode ser dividido, resultando em outro número inteiro. Por exemplo, dois é o denominador comum de todos os números pares. É bastante usado para simplificar equações e problemas matemáticos que envolvem múltiplas frações e divisões.
O denominador comum é a essência do seu ser, aquela partezinha dentro de você que nunca deixa de ser você independente do quanto sua mentalidade, seu ambiente, suas convicções e sua expressão do eu mude. É algo sobre si que só você sabe e não faz questão alguma de deixar mais ninguém saber. Não como um segredo, mas como um tesouro. É algo que se guarda e preserva, não algo que se esconde.
DENOMINADOR COMUM
o tempo passa e ainda tem
tanta coisa que não convém
contar pra ninguém porque
a poucos interessa saber
o que veio a acontecer
pra entender como
a felicidade me cai bem.há muitos segredos meus
que são bem melhores guardados
no fundo da gaveta,
no cantinho do quarto,
e até mesmo
quando isso me mata
tem coisas que eu sei
que não faz bem
a gente falar assim, na lata.e, pensando no que se passa,
me pergunto de onde vem a calma.
de onde vem?
de onde vem o que eu sou
quando eu não preciso ser ninguém?
Poema presente no meu livro O Mundo por Trás dos Vulcões.
As formas que a essência se manifesta
A próxima pergunta que guia esse trem desgovernado dos meus pensamentos é: de onde vem o que eu sou quando não preciso ser ninguém?
É fato que a nossa expressão do eu é moldada pelo meio no qual estamos. Desde cedo aprendemos a socializar, a ter bons modos em público – e isso é a nossa família quem nos ensina. Depois aprendemos a nos conectar com novas pessoas que podem possuir hábitos, crenças e rotinas diferentes da nossas durante a fase escolar, o que nos lapida mais um pouquinho para a vida em sociedade. A expressão do nosso eu é, basicamente, a soma de todas as formas que aprendemos a interagir e nos expressar ao longo da vida respeitando as normas sociais de cada ambiente. O intuito da socialização é sempre refinar cada vez mais a régua do que expressar, quanto expressar e de que maneira expressar nossa essência para conviver em harmonia com as outras pessoas.
Temos o tato de não fazer algumas piadas na presença de pessoas mais velhas, mas não freamos a língua quando entre amigos. Há ambientes que não fazem sentido em um contexto romântico, mas são perfeitos para frequentar com os irmãos. Comentários que nascem e morrem na rodinha dos primos. Gírias e vícios de linguagem que são deixadas de fora durante reuniões profissionais. Estamos constantemente adaptando a forma como nos manifestamos ao entrar em contato com outras pessoas. A forma como nos comunicamos é o que vai demonstrar aos outros quem somos, é a ponte entre tudo que existe dentro de cada um de nós e o mundo exterior.
Há ambientes e grupos que só conhecem uma versão limitada e engessada de você, porque é o que se espera de você naquele meio, como no trabalho ou no ambiente acadêmico. Seus amigos do fundamental conhecem uma versão de você que não existe há muito tempo, assim como seus professores do ensino médio. Seu primeiro namorado/a também. Mas, em nenhum momento, ao longo desses anos, você deixou de ser você — apenas deixou de ser aquela versão que essas pessoas conheciam. E isso é ótimo.
Quem fica quando você deixa de ser aquilo que era?
Tendemos a sentir-nos mais à vontade com pessoas que permitem que nossa essência se manifeste livremente, sem que precisemos nos adaptar pertencer àquele lugar. Pessoas que nos deixam ser nós mesmos sem maiores preocupações são ouro, e é com elas que devemos nos cercar. Tendem a ser nossos amigos mais íntimos, nossa família. É ideal que busquemos essa liberdade de ser dentro de um relacionamento — aliás, é também uma forma de garantir que somos amados pelo que somos (e vice-versa). Se você precisa se moldar tanto para se encaixar em um relacionamento ou amizade, será que essa pessoa realmente gosta de você?
Quem que te acompanhou mais intimamente ao longo da vida com certeza sente afinidade por quem você é em seu interior e pode ser capaz de apontar um pouco do que se manteve com você após todas as suas metamorfoses externas. Amam isso, respeitam e aceitam sua essência, conseguem se conectar com ela independente de como está seu exterior (salvo casos MUITO extremos).
Por outro lado, também existem as pessoas que despertam o instinto de ser menos, de se podar de alguma forma, de fazer um grande esforço para se encaixar naquele ambiente, de se lapidar e diminuir. Infelizmente, temos que conviver com pessoas assim, com quem "o santo não bate", e acabamos sufocando um pouco nosso jeitinho de ser, nos mascarando (ou não, também) em prol da boa convivência. Essas tendem a ser relações conflituosas, que trazem interações desgastantes, pessoas com quem você precisa se esforçar para estar junto e em sintonia. É comum precisar lidar com gente assim no dia a dia, mas se atente caso pessoas dos seus círculos mais íntimos também façam você se sentir assim. É normal que com o correr do tempo algumas conexões deixem de fazer sentido.
O caminho para dentro
Seu denominador comum é como um fio conectando todas as versões de si. Um fio de Ariadne no seu labirinto interno. É uma crença íntima, algo que você sempre foi, independentemente de quantas vezes já foi alguma coisa, é algo dentro de si que te atravessa por toda vida e sempre está lá. É a sua contradição suprema. É o brilho nos olhos. São seus hábitos e manias.
Mas, de onde vem isso? De onde vem o que eu sou quando não preciso ser ninguém?
Vem daquele lugar inacessível de solidão infinda que temos dentro da gente. Dos momentos de silêncio entre uma frase e outra de todas conversas que você teve. Das opiniões e ideias que você formulou enquanto consumia filmes, séries e livros. Dos medos que você já sentiu e como lidou com eles, das dores que você nunca conseguiu descrever, físicas e emocionais, vem da consciência do que você não é. E não é algo que muda, essencialmente, apenas se complementa. É um lugar onde você cultiva coisas sobre si mesmo que não faz questão nenhuma que as pessoas saibam porque as cultiva para si. São as verdades que te bastam e que te sustentam.
flores existindo são tão belas
e não precisam de plateia
E é só quando você não precisa ser ninguém pertencente a lugar nenhum além de si mesmo é que você está mais próximo da sua essência. Estar sozinha é a melhor forma de se descobrir e de explorar quem você é, de conhecer seu denominador comum. É ótimo estar com pessoas que te deixam livre para ser você, mas a solidão é necessária para poder se conhecer profundamente.
Vou dar um exemplo:
Você passa sua vida toda morando na casa dos seus pais, seguindo a rotina de vida deles: limpeza, refeições, horários de acordar, dormir, compromissos... você cresce ali e se adapta àquela realidade, mas não é de fato a sua realidade. É a realidade na qual você cresceu inserida, portanto você só conheceu sua versão sua adaptada para a vida com os pais, a sua rotina inserida no ritmo da casa deles. Muitas vezes é um ritmo bom, que faz sentido e é confortável de seguir; outras vezes não. De qualquer forma, esse modo de vida preliminar vai ser rompido no dia que você sair da casa da sua infância, e aqui temos duas opções de caminho:
1. Você sai pra morar com outra pessoa. Seja um amigo, um cônjuge ou um amigado com fé casado é, você divide seu espaço e sua rotina com outra pessoa. Começando do zero, ambos têm a possibilidade de encontrar uma forma confortável de viver em conjunto, um ritmo agradável para vocês. É algo compartilhado, de fato, mas é com alguém que te deixa confortável pra ser você, então já é algo mais seu. E existe a segunda opção:
2. Você sai pra morar só. Tem todo tempo do mundo para descobrir a forma que você funciona melhor, encontrar o que faz sentido e construir sua própria rotina, desvendar o seu próprio ritmo. É maravilhoso e libertador. Todo mundo deveria ter a experiência de morar sozinho pelo menos uma vez na vida. Muitas coisas sobre nós mesmos só podem ser descobertas quando estamos a sós, sem a influência de ninguém. Estar só é a mais estranha das liberdades.
No primeiro cenário, nós vemos a adaptação. Você mesma ajuda a criar seu molde, mas você sai de um molde, assim como a outra pessoa. No segundo cenário, você está em liberdade total para encontrar seu denominador comum do seu jeito, no seu ritmo. Isso não é maravilhoso?
O QUE EU PUDER SER
o que levo comigo,
bem pouquinho
do que restou,
o denominador comum,
aquele que sobrou,
é a essência de ser eu
e o ser sem nenhum pudor
fico parada na margem
do olhar do espectador
sem nem me preocupar
sem persona pra sustentar,
agora é o tempo que me leva
não quero mais ter raiva
e não quero mais ter pressa,
quero ser tudo o que eu puder ser
e não só ser o que me resta
💡 Hints da vez:
📖 O livro mais inspirador e esclarecedor sobre a solidão que eu já li foi A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão, da Ana Suy. Da lista de livros que TODO MUNDO DEVERIA LER. Sério. Descobri recentemente que ela também tem uma newsletter por aqui, vale conhecer.
🎶 Escrevi essa edição ouvindo (em repeat) Novos Baianos – Mistério do Planeta; Plutão Já Foi Planeta – Viagem Perdida e Mc Luanna - Só. Outra recomendação valiosa da categoria músicas para crises existenciais é Não sei o que fazer comigo - Vespas Mandarias.
⚠️ Informes informais:
📝 Essa semana estou enviando pelos correios os livros que foram adquiridos na pré venda. Que momento incrível foi autografar um a um com carinho e emoção e saber que logo logo aproximadamente 50 pessoas vão estar recebendo essa parte tão importante de mim! Ainda não tenho certeza de quando o livro fica disponível no site para compra, mas trago a info assim que souber <3
💭 Nos vemos na próxima edição! Até lá, me conte tudo que você pensa: