ópera fantasma
Nada tenho.
Nada me pode ser tirado.
Eu sou o ex-estranho,
o que veio sem ser chamado
e, gato, se foi
sem fazer nenhum ruído
(Paulo Leminski)
Por muito tempo eu me contentei em ser uma mera espectadora para o que os outros faziam de arte. O sentimento de não pertencimento me dominou por quase todos os anos da minha adolescência e pela maior parte do começo da minha vida adulta. Enfim, corri do meu destino porque sabia que o destino do poeta é dormir e acordar sem jamais despertar do seu sonho e eu precisava do chão sob os pés. Sabia que o destino do artista é sangrar e desnudar-se. Tamanha exposição sempre me apavorou, então eu só admirava em silencio aqueles que tinham a coragem de virar a si mesmos do avesso só para mostrar tudo o que florescia na parte de dentro. Por minha vez, eu florescia também, tímida e solitária, meio à sombra de tudo isso, sem nunca ser por completo.
Tive imensa dificuldade para conseguir me reconhecer como artista, ocupar espaços de criatividade e trocar com pessoas como eu. Por consequência, em alguns momentos me sinto em atraso porque perdi muitas coisas, especialmente tempo, não sendo eu mesma, não abraçando meu lado artístico, meu eu lírico. Perdi tempo precioso em negação, perdi conexões valiosas e oportunidades douradas e agora só me resta o bronze ou no máximo a prata. Sinto que ainda tem coisas que me travam. Desperdicei vitalidade e me diminuí me sentindo não bem vinda em espaços que eu queria pertencer, em grupos dos quais eu queria fazer parte e fugi disso como o diabo foge da cruz por pura neurose da minha cabeça. A tal da síndrome de impostora. Mas a gente acaba encontrando nosso destino justamente no caminho que escolhemos para fugir dele, não é? Olha eu aqui.
Por isso nesses últimos tempos eu tenho me dedicado um pouco aos estudos de poesia clássica, métrica e todas as regrinhas já inventadas para escrever poemas. Estou procurando conhecer novos poetas também. Em partes por curiosidade, em partes para ampliar meu repertório, ter uma voz mais firme dentro da minha própria escrita e, quem sabe, encontrar um refresco da minha visão poética para os projetos em que ando trabalhando.
Admito que cruzar o limiar do raso conhecimento que eu tinha (tenho) tem sido um misto de tédio e fascínio. Tédio porque são muitas regrinhas, muitos nominhos, muitas pequenezas para aprender, muitas (todas) aulas de português do ensino fundamental para revisitar, me lembrar do que é ditongo, hiato, sílabas tônicas e átonas e todas essas coisinhas que eu talvez devesse ter dado mais atenção na escola. O fascínio é pelos grandes mestres que conseguiram expressar tanta beleza nas suas obras mesmo seguindo regras tão rígidas, o que eu acho dificílimo e, confesso, um pouco chato e limitante. É que sou do time do verso livre. Mario Quintana dizia que “O estilo muito ornado lembra aqueles antigos altares barrocos, tão cheios de anjinhos que a gente mal conseguia enxergar o santo”.
Ainda assim, me familiarizar com esse lado mais rigoroso da poesia tem sido uma aventura interessante e saber das coisas nunca é demais. Tem me ajudado, aliás, a criar com mais facilidade. É gostoso quando a gente se dedica pra algo que a gente gosta e o fazer poético tem ocupado bastante os meus dias. Eu estou trabalhado em alguns escritos e projetos de livros, um deles um pouco mais encaminhado e o outro apenas a semente de uma ideia a se desenvolver. Também resolvi produzir videopoesias para postar no meu instagram (inclusive, já aproveita e me segue por lá!) e pretendo fazer isso com uma certa frequência. Sinto um fluxo, uma entrega mútua entre eu e a minha arte. Percebi que dentre todas as coisas que eu sou, poeta é a mais importante delas.
Retomo o fio do início: eu tenho tentado correr atrás do tempo perdido. Não quero mais ser estranha àquilo que me faz bem, quero tomar posse do meu lugar como artista e ser tudo que eu puder ser.
O que eu puder ser
o que levo comigo,
bem pouquinho
do que restou,
o denominador comum,
aquele que sobrou,
é a essência de ser eu
e o ser sem nenhum pudor,
fico parada na margem
do olhar do espectador
sem nem me preocupar,
sem persona pra sustentar
agora é o tempo que me leva
não quero mais ter raiva
e nem quero mais ter pressa.
quero ser tudo o que eu puder ser
e não só ser o que me resta.
(poema presente em um dos meus projetos futuros)
O projeto que tenho trabalhado ultimamente fala um pouco sobre isso: sobre ser poeta, sobre sair de si, sobre entrega e identidade. É algo que cultivo há bastante tempo e acho que é hora de deixar florescer, deixar vir ao mundo. Quando publiquei O Mundo Por Trás dos Vulcões, senti que uma porta se abriu pra mim, ou reabriu na verdade, e eu não desejo vê-la fechada nunca mais. Espero em breve ter boas novidades acerca desse assunto <3. Não tem sido difícil porque tenho muitos poemas escrito, um verdadeiro arsenal. Vários que não entraram no MPTDV, alguns que estou “reformando” e muitos que venho produzindo recentemente. Estou num desafio comigo mesma de fazer um poema por semana, ou ao menos ter o rascunho de um poema a cada semana. Alguns entram nesse projeto, outros ficam soltos, outros eu escrevo pensando nas minhas apresentações em slams.
Inclusive, nesse domingo (04/05) a partir das 13:30 vou estar competindo no Slam da Quebrada Líder, que rola lá no Parque do Carmo, relíquia da zona leste de São Paulo. Aos residentes dessa Babilônia moderna, deixo o convite para irem me ver e também para prestigiar os outros poetas. Pretendo levar alguns zines para vender (outra barreira que estou tentando superar, a de oferecer meus zines para as pessoas nos eventos de poesia).
Acho que isso que estou passando é aquele momento da vida adulta em que nos vemos compelidos a nos voltar para a nossa criança interior. Minha criança quer gritar, ser vista, reconhecida na sua arte, afinal é uma posição que eu me neguei por muito tempo essa de ser artista das palavras. Talvez eu nunca tenha me considerado apta para isso, eu sempre fui muito boa em me desacredidar, mas tem sido mais fácil ver que eu sou, que isso também é meu, isso também é eu e estou pronta pra assumir esse papel. Ganho confiança. Resgatar-me poeta é resgatar-me inteira. Sei que estou onde deveria estar e que faço florescer no meu ritmo, do meu modo.
Eu sempre tive medo do fracasso e da mediocridade, de não ser artista suficiente. Ironicamente, passei muito tempo tentando ser um pouco menos por não achar que o que eu já era bastaria e acabei realmente não bastando, mas não por não ser e sim por me colocar nessa posição de me diminuir. Faz algum sentido isso? Pra não me frustrar, me condicionei a ser o que eu temia me tornar e tem dias que ainda sinto que estou dez passos para trás, então tento sempre me lembrar de que estou vivendo no meu tempo e que antes tarde do que mais tarde ainda. Ainda há muita vida, muito verso pela frente.
Me deixa feliz e aliviada saber que estou, aos poucos, conseguindo tomar posse de algo que sempre foi meu, que sempre foi eu, mas que eu tentei matar por tanto tempo. Criar cura e me cercar de pessoas, física e virtualmente, que me inspiram foi a melhor decisão que eu tomei por mim mesma. Olhar e pensar: “quero chegar até aqui um dia” e trabalhar pra isso, sem temer o que posso me tornar. Tenho me sentido mais próxima de mim do que me senti em muito tempo.
Venho tendo oportunidades constantes de me apresentar, de performar a minha poesia para além do texto e explorar essas novas formas de fazer/ser poesia tem sido muito bom pra mim. Venho testando estilos e formatos diferentes para apresentar as minhas ideias e construir os meus versos. Admito que trabalhar a performance é a parte difícil para mim, um desafio que enfrento há bastante tempo, mas é gostoso ir descobrindo novos limites e isso traz uma nova luz para a minha arte.
E fazer arte é se expor de várias maneiras diferentes. Um pouco de quem você é, da sua visão de mundo, das suas ideias e ideais, da sua essência, do que te acende por dentro, ou o que te apaga. Isso sempre me apavorou. Eu fantasiava com a figura de escritor recluso e misterioso, que tem um legado imenso de obras veneráveis que falam por si, o permitindo se manter como uma figura obscura e que beira o anonimato. Na vida real é diferente, ainda mais quando se é escritora independente. Se você não se mover para fazer seu trabalho alcançar as pessoas, mais ninguém vai. Tem sido surpreendente encontrar realização nas coisas que antes me apequenavam e amedrontavam. É incrível como os caminhos que mais se abrem pra gente são aqueles que a gente escolhe caminhar e fazer acontecer. Desde que tomei essa decisão de abraçar quem eu sou, tudo tem fluido e encontrado seu lugar com muita naturalidade. As coisas só acontecem.
Esse texto é algo entre um manifesto e um desabafo. Não sei dizer o que vem pela frente, mas consigo entrever um caminho florido que começa na decisão de abraçar o que eu sou, as minhas excentricidades e sustentar o que eu me propuser a ser da forma que eu puder, sem me comparar ou medir com fulano ou ciclano. Tem sido mais fácil abraçar a alcunha de artista agora porque o faço por mim, porque se não o fizesse, eu deixaria de ser eu.
Comecei essa edição com uma poesia do Leminski e vou encerrar essa edição com outra.
Razão de ser
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece.
E as estrelas lá no céu
Lembram letras no papel,
Quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
💡 Hints da vez:
📚 Dois dos livros que li até o momento nos meus estudos de poesia foram O Esmeril de Horácio (Érico Nogueira) e Manual do Poeta Aprendiz (José Antônio Martino). De novidade em poesia, tenho lido Chacal e Hilda Hilst.
🎶 Tenho ouvido quase que obsessivamente o álbum do Bad Bunny Debí tirar más fotos, principalmente para treinar meu espanhol. A música Lo que le pasó a Hawaii alugou um condomínio inteiro na minha cabeça por ser um grito de socorro para que o imperialismo americano pare de roubar da população da ilha a sua identidade e cultura local. Poesia pura com um sotaque caribenho assustador (eles comem todos os S).
➥ Recentemente li uma news por aqui falando um pouco sobre essa questão do trauma ser um ponto de partida para a criação e que monetizar com isso é quase que uma reparação histórica. Fica a dica de leitura ;)
⚠️ Informes informais:
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💭 Nos vemos na próxima edição! Até lá, subscreva-se, compartilhe com os amigos e não deixe de me contar tudo que você pensa:
é sobre Carol! na minha humilde visão o que o artista precisa ter pra caminhar é uma vontade e persistência que beiram certa loucura pensando no mundo e suas formas.
uma vez uma conhecida talentosa me disse que não ia fazer o corre da arte, era difícil e ela tinha medo de virar uma artista frustrada. consigo entender, é difícil mesmo e cada um sabe suas possibilidades materiais, emocionais etc. mas fiquei triste pela arte e por pensar que na real ela já era artista, sempre tinha sido, e já estava frustrada por não seguir.
lembrei disso lendo seu texto, bom ver artistas seguindo apesar das dúvidas que sempre vão rolar. sucesso e persistência na caminhada! bjbjbj
Oi, Carol! Que bonita a sua fala!
Eu decidi perseguir o caminho da poesia aos 37 anos. Sempre é tempo de se assumir poeta. Hoje tenho 40 e, todos os dias, escolho a poesia de novo e mais uma vez. É como refazer os votos de um casamento.
Boa jornada!