Pra quem não sabe, NPCs são non-playable characters, ou personagens não jogáveis. Aqueles figurantes dos videogames, sabe? Que existem na realidade do jogo, mas só estão ali pra preencher o cenário ou ter interações pré-definidas com o personagem principal, como indicar um caminho, explicar uma tarefa, ter uma conversa esclarecedora, essas coisas. São parte da experiência, mas não têm uma vida para além daquilo.
Na vida real, são aquelas pessoas que não vivem, só existem como essas figuras secundárias e desprovidas de identidade própria, parecendo seguir um roteiro invisível de pano de fundo, sem autonomia ou escolhas autênticas. Seguem o curso da vida sem deixar marcas significativas ao seu redor, não possuem características marcantes de fato e a personalidade delas é tão envolvente quanto um pedaço de cartolina bege. Acredito que esse é o motivo e ao mesmo tempo a consequência dessas pessoas experimentarem uma profunda desconexão consigo mesmas, tão condicionadas a seguir esse roteiro pré-estabelecido.
E eu não estou falando a respeito de pessoas que conhecemos superficialmente e, por não termos uma ligação profunda, suas peculiaridades passam despercebido. Falo daquelas que simplesmente se orgulham de não serem nada além do comum. Não são necessariamente chatas, apenas banais – e acham isso um máximo! Geralmente não têm hobbies, não gostam de fazer nada diferente, o ápice do entretenimento é uma nova temporada na Netflix. Seu Spotify está lotado com playlists das mais tocadas no momento. Possuem uma aparência super padrão que não buscam transgredir de maneira alguma, inclusive vivem se submetendo a rituais estéticos beirando o sinistro para se tornarem ainda mais padronizadas. Não possuem nenhum tipo de extravagância e gastam energia soterrando ao máximo suas esquisitices apenas para se encaixar no padrão. Simplesmente se contentam em seguir o roteiro, sem se preocupar em serem os protagonistas da própria vida.
Traçando um paralelo com um texto publicado recentemente (e que eu te convido a ler), são pessoas profundamente desalinhadas com sua essência, ou em negação dessa essência, e que fazem de um tudo para pertencer ao senso comum e não almejam nada além disso para as próprias vidas. Veja bem, esse é, essencialmente, o problema. Não é problema gostar do que a maioria das pessoas gostam, afinal coisas populares são populares por um motivo.
Pessoas assim não veem sentido em fazer esforço para encontrar seu lugar no mundo, apenas almejam um lugar que já esteja pré-fabricado e elas só precisem se lapidar para caber ali. Sentem-se seguras ao pertencer e confortáveis em precisar podar quem são para se encaixar. Se contentam com o previsível, e quem pode culpar a eles? Se autodescobrir e, principalmente, se permitir viver essa descoberta é uma tarefa árdua e desconfortável, muitas vezes demanda uma vida inteira de perguntas sem resposta. Mas é recompensador.
Os NPCs do mundo real são pessoas que ficam mais confortáveis em seguir o fluxo. Geralmente essa postura passiva vem de um medo arrebatador que, de acordo com as minhas observações, pode ser resumido em três coisas:
1. O medo de fracassar;
2. O medo se de arrepender ou ter que voltar atrás;
3. O medo de desapontar.
O medo de errar é algo que naturalmente todas as pessoas sentem. Só que em alguns casos, é algo tão devastador e paralisante que aquele indivíduo não sobreviveria à própria falha. Pessoas assim se prendem em ciclos viciosos, envergonhados de seus erros, ao invés de aprender com eles e tomar outro caminho. Encarar o arrependimento e/ou precisar recomeçar tudo depois de não ter dado certo, são como um atestado de fracasso.
Em exemplos, são aqueles conhecidos que sustentam uma relação falida por não quererem ser solteirões. Se mantêm num empregos ruins e estressantes porque lutaram muito por aquela posição e seria “feio” dar pra trás agora. Escondem decisões de vida péssimas só para não terem que admitir que houve um equívoco e será preciso começar do zero novamente. E tudo sempre por vergonha ou status, buscando por uma integridade de imagem que garantirá respeito no campo do senso comum, o que nos leva ao item três:
Pessoas que são tão preocupadas com o que aparentam ser que não fazem ideia do que de fato são. Desapontar as pessoas que esperam que você aja de determinada maneira seria a morte, então é melhor não dar muita atenção ao eu interior para que ele não fale mais alto. Deixar transparecer suas excentricidades é impensável; impor sua individualidade acima do senso comum? Um crime.
Em exemplos, seria o equivalente do vestibulando que se mata para ingressar em medicina por ser o sonho dos pais, quando os próprios sonhos lhe pedem uma licenciatura. Ou o cara que escolhe namorar uma moça mais “padrãozinha” ao invés de alguém que ele realmente goste, mas que se encaixa no padrão estético, por medo dos comentários dos amigos. A mulher que se deixa convencer a ter filhos, cedendo à pressão do cônjuge ou família mesmo sem se sentir pronta para ser mãe. Filhos que escondem a sexualidade dos pais. Tantas coisas sendo feitas ou deixadas de lado pensando em agradar terceiros ou ser bem visto por eles.
Os NPCs seguem sonhos e perseguem os ideais de outras pessoas porque é mais cômodo pertencer a um lugar comum do que precisar encontrar o caminho para o seu próprio lugar. Isso tudo que eu falei compartilha uma mesma raiz que éa constante preocupação com a opinião das pessoas ao seu redor.
“Conhece-te a ti mesmo e conhecerá aos deuses e ao universo.”
(Inscrição no pórtico de entrada do Templo de Apolo em Delfos, na Grécia)
Pessoas que são um NPC não se aventuram porque sair do conhecido as deixa horrorizadas, se destacar do comum é inconcebível e abandonar a zona de conforto parece desnecessário. Seguem suas vidas sempre bebendo mais do mesmo. Estão sempre na moda, sempre na média. Possuem a confiança de quem sabe algo que o resto de nós desconhece. Às vezes eu invejo esse senso de certeza, essa bússola incorruptível e ridiculamente simples que os guia, mas penso que são caminhos vazios e limitados, embora inegavelmente confortáveis.
Confortáveis porque em geral, são pessoas mais conformadas com a realidade, mais propensas a um encolher de ombros singelo como quem diz “fazer o que, né?” ao invés de se inquietar e querer esmiuçar as coisas da vida a fundo, inclusive tendem a ser pessoas bem pouco politizadas e conscientes socialmente. Não possuem uma curiosidade inerente, se contentam com vivências rasas e dificilmente saem em busca de algo mais profundo, nem dentro delas mesmas porque têm um pouco de medo do que vão encontrar. São pessoas que têm grandes dificuldades em abraçar as próprias contradições.
Para ser justa, talvez todos nós já tenhamos sido um pouco NPC em algum momento, seja por medo, por insegurança ou apego ao conhecido, ao óbvio, ao esperado. Em dado momento, algumas pessoas apenas resolvem que aquilo não basta mais. Outros dedicam suas vidas para evitar as mudanças e o crescimento, aninhando-se numa cama de problemas que lhes são familiares e conhecidos, cultivando-os para que não haja espaço para a chegada de nada novo. Assim, limitam o que conhecem da vida e de si mesmos.
Tenho bastante experiência em lidar com esse tipo de gente, principalmente pelo meu trabalho com o tarot. As questões que motivam as pessoas a buscarem respostas e conforto cósmico (e gastar dinheiro com isso) com certeza te surpreenderiam. Verdades que muitas vezes já residem nelas próprias, ou estão logo à frente, pouco além do óbvio, se tornam inalcançáveis para as suas limitações. Claro que busco não julgar as necessidades das pessoas, mas em muitos dos casos a falta de autoconsciência é tão grande que necessita que alguém de fora diga com todas as letras algo que a própria pessoa sente ou pensa.
Sempre que chega um desses casos na minha mesa – o que acontece com mais frequência do que eu gostaria – me flagro invejando o quão pouco essas pessoas precisam para estarem bem resolvidas com as próprias vidas. Enquanto isso, na minha mente reina o caos e a constante insegurança, com as quais eu estou aprendendo a conviver, explorando os limites, densidade e matizes dos meus problemas, medos e aflições. Venho constantemente sentando com meus demônios para um café da tarde.
Enquanto muitos fogem de si, eu ando lado a lado com as minhas sombras, os meus erros e os meus vícios, abraços as minhas contradições sem me preocupar muito em esclarecê-las, ainda mais para mim mesma. Vivo a vida me equilibrando na corda bamba entre conhecer minhas sombras profundamente e sucumbir a elas.
Explorar essa escuridão interna, desejos reprimidos e pensamentos obscuros, aprender a viver em harmonia com eles é algo que a filosofia esotérica incentiva e é ótimo para o lado espiritual, mas também funciona para a vida prática. Em áreas mais mundanas e objetivas, eu busco acalento e compreensão para as minhas obscuridades, neuroses e ânsias na terapia (vamos fazer de conta que eu não abandonei meu tratamento há meses). Saber como controlar o que te fere por dentro exige muita dedicação e muito mais resiliência do que o que te fere por fora.
Agora, um paralelo que fala diretamente com quem é meio artista das ideias: percebo essa convivência mais harmônica com o lado menos bonito da existência sendo bem mais evidente em pessoas que criam, que fazem arte e são profundamente ligadas à sua veia artística. A maioria de nós cria por necessidade, justamente para explorar esse lado mais obscuro de nós mesmos enquanto seres humanos. Toda criação é precedida pelo caos da destruição.
Pessoas que conhecem suas estranhezas e, para além disso, as abraçam e dançam com elas, que ainda têm a bizarra coragem de expor um pouco da sua perturbação mental, das vozes da própria cabeça e da preciosa visão de mundo, estão profundamente alinhadas com a sua essência. Podem não ter encontrado um ponto de harmonia ainda, mas ao menos estão no caminho. É sempre claro no olhar do indivíduo quando ele está a par da própria obscuridade. É lindo, é rebelde, é intimidador e atraente ao mesmo tempo. Fazer arte, qualquer tipo de arte, é um pouco sobre sair de si ou pelo menos se permitir experimentar uma nova versão de si. Fazer arte é uma fuga para quem pensa demais.
Portanto, podemos concluir que quanto mais consciente a respeito de si mesmo você de fato é, mais longe da normalidade e do padrão você se dispõe a viver. Quanto mais desperto você é, menos você faz questão de se encaixar nos lugares comuns e seguir convenções. É doloroso as vezes, admito, mas é libertador.
Muitas pessoas, claro, não sentem essa inquietação ou, se sentem, não sentem curiosidade suficiente para ir a fundo nisso. Cada um mergulha em si até onde se sente confortável.
Hints da vez:
📖 Entre alguns estudos de poesia clássica, tenho lido A Escrita Como aFca e Outros Textos da Annie Ernaux. São vários ensaios sobre escrever, então se você é desse meio de fazer arte com as palavras, recomendo a leitura.
🎶 Escrevi essa edição ouvindo, no repeat, Cook kids do Echosmith, hino dos adolescentes indies desajustados dos anos 2010.
⚠️ Informes informais:
📖 Se você ainda não tá sabendo, eu publiquei meu primeiro livro de poesias recentemente. Conheça O Mundo Por Trás dos Vulcões e saiba onde adquirir tanto a versão física quanto a digital clicando aqui!
📝 Recentemente tive algumas poesias publicadas no site da Revista Navalhista, vem dar uma conferida! Só clicar aqui <3
💭 Nos vemos na próxima edição! Até lá, me conte tudo que você pensa: